Só sei que nada sei, mas ainda insisto em digitar...

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Só sei que violência gera violência. - Rorschach x Justiça no Planeta.

"Confesso que eu mesmo, caso não acreditasse ou não tivesse fé em Deus, já teria me tornado um vigilante mascarado há MUITO tempo."

Primeira aparição de Rorschach
em "Watchmen".


"12 de outubro de 1985. Carcaça de um cão morto no beco hoje de manhã com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face. As ruas são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A imundice de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando "salve-nos"... e eu vou olhar para baixo e dizer "não". Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. Agora o mundo todo está na beira do abismo contemplando o inferno e os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia... de repente não sabem mais o que dizer."

Assim começa a mais aclamada "graphic novel" de todos os tempos.

Elenco de "Watchmen".
Ilustração clássica.


"Rorschach" não é bem meu personagem preferido da trama de "Watchmen", mas sem dúvida é o que eu mais admiro dentre todos eles. Rorschach é o alter-ego de Walter Joseph Kovacs, e tem esse nome pois usa uma máscara manchada, cujas manchas vão se moldando à máscara do personagem, conforme o mesmo vai mudando de expressões ou emoções. Ele é praticamente o personagem principal da trama, além de ser o principal narrador. Ele narra a história nos quadrinhos da mesma forma que a narra em seu diário. Ele passa a  história toda escrevendo em seu diário. Após o assassinato do Comediante, em 1985, Rorschach passa a investigar o seu possível assassino, descobrindo então, aos poucos, uma conspiração maior do que ele mesmo cogitava. Assim, vai aos poucos tentando alertar os outros heróis aposentados, dizendo que alguém lá fora estava matando os antigos mascarados. E ele diz "antigos", pois ele mesmo, Rorschach, foi o único que continuou agindo (na ilegalidade) após a aprovação da "Lei Keene", sendo ele um constante procurado pela Polícia e pelo Governo.

Rorschach, ao invadir o apartamento de Edward Blake,
logo após a polícia cercar o local.



"13 de outubro de 1985. Dormi o dia todo. Acordei às 16:37, com a senhoria reclamando do cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Deve enganar a previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo a cidade grita como um matadouro cheio de crianças retardadas. Nova York. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Alguém sabe por quê. Lá embaixo... alguém sabe. O crepúsculo fede a fornicação e más consciências. Acho que vou me exercitar.
Primeira visita da noite infrutífera. Ninguém sabia de nada. Sinto-me deprimido. A cidade está morrendo de hidrofobia. Será que só consigo limpar a baba da sua boca? Jamais se desesperar. Jamais se render. Deixo as baratas humanas discutindo heroína e pornografia infantil. Tenho assuntos a tratar com outra classe de pessoas.

20:30. Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. Talvez homossexual? Devo me lembrar de investigar mais. Dreiberg não fica atrás. Um fracassado lamuriando-se no porão. Por que restam tão poucos de nós na ativa e sem desvios de personalidade? O primeiro Coruja é dono de uma oficina. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na Califórnia. Capitão Metrópolis foi decapitado num acidente de carro em 1974. O Mariposa está num hospício no Maine. Silhouette aposentou-se em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi baleado. Justiceiro Encapuzado sumiu em 55. O Comediante está morto. Só restam dois nomes na minha lista. Ambos moram no Centro Rockefeller de Pesquisas Militares. Eu vou até eles. Vou avisar o homem indestrutível que alguém planeja matá-lo.

23:30. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Jogado pela janela. Quando atingiu a calçada, a cabeça dele entrou no estômago. Ninguém liga. Ninguém além de mim. Será que eles estão certos? Logo vai haver guerra. Milhões vão queimar. Milhões vão perecer de doença e miséria. Por que se importar com uma morte? Porque existe o bem e o mal, e o mal tem de ser punido. Mesmo à beira do fim, isso não vai mudar. Mas muitos merecem punição... e há tão pouco tempo"

Sequência que narra uma das partes de seu Diário.



Vamos por partes. As imagens que aparecem em sua máscara são imagens do "Teste de Rorschach", e é necessário sabermos o básico sobre esse mencionado teste antes de continuarmos com o "Especial Watchmen" da forma elegante com a qual o mesmo vem sendo conduzido. O Teste de Rorschach é um teste psicológico desenvolvido pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach.

O psiquiatra suíço Hermann Rorschach, que é
a cara de Brad Pitt em "Bastardos Inglórios".


É aquele teste em que você tenta dizer o quê entendeu de dez manchas de tintas simétricas que mostram pra você, sempre nas cores preta e branca. Eu inclusive me recordo de ter feito esse teste na minha escola, na primeira série. Com suas interpretações e respostas, procura-se obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo. É dito que a pessoas projeta aspectos de sua própria personalidade ao interpretar os borrões de tinta. O examinador pega a prancheta e pergunta pra ti: "- O que poderia ser isto?" E o examinado responde o que quiser, quantas vezes quiser.

Algumas imagens do "Teste de Rorschach".
O quê isso lhe parece?


Classificam -se as respostas levando em conta quatro pontos de vista:

1. modo de percepção - ou seja, se o borrão é visto como um todo ou se apenas uma parte é importante (e, neste caso, em que parte do borrão);

2. determinante - ou seja, que aspecto do borrão foi importante para a resposta: a forma, a cor, a impressão de movimento;

3. conteúdo - a figura decrita é de um ser humano, de um animal, uma parte do corpo humano, uma planta, uma paisagem, uma objeto (arquitetônico, histórico, etc.);

4. originalidade ou vulgaridade da resposta - ou seja, se a resposta é, na população da pessoa que está sendo testada, uma resposta muito comum (que muitas pessoas dão) ou muito rara.

Com o resultado dos testes, o examinador tem a oportunidade de examinar uma estimativa do grau de inteligência de alguém, qual o tipo de inteligência mais desenvolvido dessa pessoa (se ela tende à artes, trabalho técnico, se é uma pessoa com imaginação mais fértil), a estrutura e o respectivo controle da vida emocional e a capacidade dessa pessoa se socializar, atitudes gerais como ambição, sentimentos de inferioridade ou superioridade, agressividade, tendência de sentir-se embaraçado, se seu humor tende mais à tristeza, alegria, apatia ou ansiedade, se existem traços neuróticos, e por aí vai.

Walter Kovacs na prisão, cagando e andando
pro "Teste de Rorschach".


Eu sei que meu blog não é dedicado ao estudo técnico da psiquiatria, mas é necessário sabermos o básico para podermos analisar o personagem Rorschach de forma mais justa. Um pouco de cultura não faz mal a ninguém, afinal. E se você não gosta de cultura, eu não quero que você leia meu blog. Sério.

Rorschach chega ao apartamento de Blake,
em cena do filme.


Já que sabemos o básico do básico sobre o Teste de Rorschach, inventado pelo Tenente Aldo Raine, vamos agora nos focar no personagem Rorschach. Mas sendo Rorschach o alter-ego de Walter Joseph Kovacs (como já supracitei), falemos primeiro sobre quem é Walter Kovacs.


O jovem Walter e sua mãe Sylvia.
Pronta para o trampo.


Walter é filho de Sylvia Kovacs, uma prostituta, e seu pai é um homem conhecido apenas como "Charlie. Nunca recebeu a devida educação e atenção da mãe, e era constantemente agredido por ela, tanto fisicamente quanto verbalmente. Sempre foi um garoto tímido e estranho. Uma vez, em uma briga, quando tinha 10 anos, chegou a arrancar a orelha de um rapaz mais velho que ele com uma mordida.

Logo após esses acontecimentos, Walter é encaminhado para um orfanato, onde desenvolve talentos para linguística e educação religiosa. 

"16 de outubro de 1985. Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os cartazes, sujando a  calçada. Me ofereceram amor sueco e amor francês... mas não amor americano. Amor americano; como Coca em garrafas de vidro verde...eles não fazem mais. Pensei na história do Moloch a caminho do cemitério. Pode ser mentira. Parte de uma vingança planejada durante uma década atrás das grades. Mas, se for verdade, o que significa? Referência intrigante a uma ilha. Também ao Dr. Manhattan. Será que ele corre perigo? Tantas perguntas. Tudo bem. Respostas em breve. Nada é insolúvel. Existe esperança. Enquanto houver vida. No cemitério, cruzes brancas se enfileram, marcas de giz numa lousa gigante. Faço última visita em silêncio, sem alarde. Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? Uma vida de conflitos sem tempo para amigos... e no fim só nossos inimigos deixam rosas. Vidas violentas terminando violentamente. Dollar Bill, Silhouette, Capitão Metrópolis... nós nunca morremos na cama. Não é permitido. Algo da nossa personalidade, talvez? Algum impulso animal para lutar e se debater, fazendo de nós o que somos? Não é importante. Fazemos o que deve ser feito. Outros enterram a cabeça entre as tetas inchadas da indulgência e da gratificação, leitões procurando abrigo debaixo de uma porca... e o futuro se avista como um trem expresso. Blake entendia. Tratava tudo como piada, mas entendia. Ele viu as rachas na sociedade. Viu os homenzinhos de máscara tentando remendar tudo... Ele viu a verdadeira face do século 20 e escolheu se tornar um reflexo, uma paródia desses tempos. Ninguém mais viu a piada. Por isso a sua solidão. Ouvi uma piada uma vez: Homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. Médico diz: "Tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade. Assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo." Homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor... eu sou o Pagliacci." Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano."

Após se formar na escola, Walter conseguiu um emprego como arrumador de vestuário em uma loja de vestidos, onde adquiriu um tecido especial. Tal tecido havia sido criado pelo Dr. Manhattan e continha líquidos sensíveis ao calor entre as camadas de látex, criando assim uma coloração preto-e-branco que mudava de forma constantemente. Esse material que Kovacs conseguiu foi na verdade recuperado de um vestido que havia sido rejeitado por uma jovem chamada Kitty Genovese.


"Vou te contar sobre Rorschach."


Dois anos depois, Walter descobre que Kitty foi estuprada e assassinada. E assim, inspirado pelo triste destino de Genovese, ele resolve fazer uma máscara com o tecido do vestido e começa a combater o crime como um vigilante mascarado, assumindo a identidade de "Rorschach".  Até então, poupava a vida dos criminosos que combatia, para que fossem presos pela polícia.

Walter conta ao psiquiatra que "deixava" os criminosos vivos.
No passado, claro.


Até que em 1975, enquanto o mesmo investigava o desaparecimento de uma jovem chamada Blair Roche (após ter prometido aos pais dela que a devolveria viva à eles), ele conseguiu chegar em uma loja de costura, com as informações que vinha colhendo nas ruas desde então. Chegando lá, ao investigar a casa, encontrou uma roupa de menina queimada num fogão, avistou dois cães que roíam um osso humano no quintal.

O dono da loja chamava-se Gerald Trice. Rorschach então mata seus dois cães, e aguarda a chegada de Gerald no recinto. Nos quadrinhos, quando Trice chega na sua loja, o algema no fogão e derrama querosene em torno dele. Deixa à ele uma serra, deixando a entender que para ele sair de lá vivo, teria que cortar sua própria mão algemada fora, antes de ser queimado vivo.

"A cidade tem medo de mim."


No filme, Rorschach o algema no fogão, dizendo então à Trice que "Homens são presos, e animais são massacrados." Desfere então, vários golpes de machadinha contra Trice, assassinando-o. (Inclusive, quero elogiar aqui publicamente a atuação de Jackie Earle Haley no papel de Rorschach nesse filme. É o personagem mais bem interpretado, seguido pelo Comediante interpretado por Jeffrey Dean Morgan. IGUAL ao do HQ. IGUAL.)

Quando juntou-se à liga de aventureiros mascarados "Watchmen", Rorschach já formava uma dupla com o Coruja.

Amizade verdadeira.


Rorschach é um detetive exímio, e também tem grande facilidade de entrar em casas ou prédios trancados. É discreto, e extremamente forte (apesar de ser baixinho). Luta utilizando seu corpo, e vive improvisando armamentos, como gordura, cigarros acesos, garfos e inclusive sua própria jaqueta. Em dado momento da história, ele é preso pela polícia numa emboscada, sendo depois resgatado da cadeia por Coruja e Espectral, durante uma rebelião na mesma. O cara é embaçado mesmo. Durante a trama, parece ser indiferente à dor e o desconforto físico. Para provar isso, em dada parte da história, Coruja e Rorschach, quando estão na Antártida, no encalço de Ozymandias, Rorschach cruza grande parte da Antártida apenas com sua jaqueta e seu cachecol.

Coruja e Rorschach na Antártida.
Só jaqueta e cachecol.


No final da história, quando descobre todo o plano mestre de Ozymandias, Rorschach é o único que não tolera o tipo de conduta dele. E diz à todos que vai voltar à Nova Iorque, acusá-lo, e contar à todos o que realmente aconteceu. Mas isso tem um porém. Caso viesse à tona que o monstro alienígena era na verdade uma farsa, uma criação humana, a paz mundial poderia ser quebrada novamente, esquentando novamente a Guerra Fria e a tensão nuclear entre Estados Unidos e Rússia.

Dr. Manhattan diz à Rorschach
que não pode deixá-lo ir.


Quando Rorschach se retira da base de Ozymandias na Antártida, o Dr. Manhattan (que já havia aceitado, como todos os outros, manter a mentira de Ozy, para garantir a paz mundial e para que tantas mortes não tenham sido em vão) tenta, pela última vez, pará-lo. Rorschach diz ao azulão que a única forma dele pará-lo, seria assassinando-o. Eis que o Dr. Manhattan assassina Rorschach ali mesmo, explodindo-o.

Rorschach sendo assassinado pelo
Dr. Manhattan na Antártida.


O que no fundo não adianta muita coisa, pois a história de "Watchmen" realmente acaba com o Diário de Rorschach (que continha simplesmente TUDO sobre a conspiração e o plano de Adrian Veidt, o Ozymandias) caindo nas mãos de um editor de um tablóide local. A história de "Watchmen" termina assim mesmo, em aberto.

Jornalista tendo acesso ao Diário de Rorschach
no final da história.


"21 de outubro de 1985. Saí da casa de Jacobi às 2:35. Ele não sabe nada sobre a tentativa de desacreditar Dr. Manhattan. Foi apenas usado. Por quem? Russos parecem a escolha óbvia: Manhattan e Comediante eram figuras militares importantes. Mas Comediante falou de uma ilha, artistas e escritores vivendo nela. Não se encaixa. Não consigo me concentrar. Cansado demais. Sem dormir desde sábado. Andei pra casa passando por latas de lixo cheias de rumores de guerra, analisando fatos; corpos; motivos... aguardando um lampejo de clareza no mar de sangue.
Acordei às onze com gritos lá fora. Perturbado por ter adormecido sem remover a pele da cabeça. Mais cansado do que imaginava. Devo ter mais cuidado. Do outro lado da rua, garotos com spray desfiguravam prédio abandonado. Memorizei feições e me preparei para o trabalho. Primeiro tirei meu rosto, dobrei e guardei no casaco. Sem face, ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou. Ao sair do quarto, encontrei a senhoria. Queixas de sempre: higiene e aluguel. Havia marcas de chupada no pescoço gordo. Recentes. Ela me lembra minha mãe. Na rua, inspecionei o prédio desfigurado: silhueta na porta, homem e mulher, possivelmente em preliminares sexuais. Não gostei. Faz porta parecer assombrada. Na 40a com a 7a, vi Dreiberg e Juspeczyk saindo do Gunga Diner. Um caso, talvez? Será que Juspeczyk arquitetou exílio de Manhattan a fim de abrir caminho para Dreiberg? Ela também odiava o Comediante. Devo investigar. Entrando no Diner, pedi café e me sentei olhando minha caixa de correio do outro lado da rua. Transeuntes fizeram vários depósitos: papel de bala, jornais, um par de tênis estrangulado pelos próprios cadarços, línguas pendendo horrivelmente. Esta cidade é um animal feroz e complicado. Para entendê-la eu leio seus dejetos, seus aromas, o movimento de seus parasitas... Sentei olhando o lixo e Nova York abriu seu coração.
Alguém tentou matar Veidt. Prova a teoria do "matador de mascarados". O assassino fecha o cerco. Verifiquei mensagens. Bilhete de Moloch. Relacionado talvez? Depois fui recolher rosto no beco. Em frente ao Utopia, polícia prendeu um viciado em KT-285. Estava gritando alguma coisa sobre o presidente Nixon. Sobre bombas. Será que todos enlouqueceram menos eu? Sobre a 40a, um elefante flutuava. Acima dele, satélites espiões invisíveis. Se eles estreitarem seus olhos de vidro, todos vamos morrer. Mundo implacável. Só há uma resposta sadia para ele. O beco estava frio e deserto. Minhas coisas estavam onde eu havia deixado. Esperando por mim. Colocando-as, abandonei o disfarce e voltei a ser eu mesmo, livre do medo, da fraqueza ou do desejo. Meu casaco, meus sapatos, minhas luvas imaculadas. Meu rosto. Tenho três horas antes de encontrar Moloch. Mais adiante, ouvi grito de mulher, primeira nota balbuciante do coro noturno da cidade. Me aproximei. Uma tentativa de estupro/assalto/ambos. Pigarreei. O homem se virou e havia algo gratificante no seu olhar. Às vezes à noite é generosa comigo."

Rorschach de rolê.


Agora, vamos à análise em si. Rorschach claramente era mentalmente desequilibrado, com um porém. E um "porém" muito importante. Ele agia com justiça. Não que isso legitimasse suas ações e seus assassinatos, mas para ele, Walter Kovacs, dentro de seu próprio código moral que ele mesmo construiu, ele era um agente do verdadeiro conceito de Justiça. E segundo ele (e segundo eu também) a Polícia, o Governo e as Leis dos homens nem de longe promovem a Justiça.

Rorschach dando uma prensa em Dan, o Coruja.


A questão é: "Quem promove a Justiça no Planeta Terra?" Resposta, na minha humilde opinião: Se Deus é infinitamente justo perante o Universo, Deus o é infinitamente justo na Terra. E nós, formigas que somos nesse formigueiro esférico e azul que gravita no Espaço, devemos nos esforçar para sermos também, justos. E assassinar pessoas não me parece ser justo de verdade. Por isso sou contra o vigilantismo, e por isso sou contra a pena de morte. E digo mais, por isso sou contra qualquer ato de vingança em nome de Justiça.

Pra quem foi de jaqueta e cachecol pra Antártida,
o que é uma chuvinha dessas?


Platão, em "A República", narra um diálogo com Sócrates sobre como seria a Justiça dentro da República. Resumidamente, Sócrates diz mais que A JUSTIÇA É A SAÚDE, A BELEZA E O BEM-ESTAR DA ALMA. Isso deixa bem claro que qualquer atitude que não seja bela por si só e não cause bem-estar na alma NÃO É UMA ATITUDE JUSTA.

Indo mais adiante na história, mais propriamente em Roma, citarei os princípios básicos do Direito Romano, tendo em vista que o Direito, em sua essência, visa pura e simplesmente promover a Justiça entre os homens.

Em Roma, os princípios do Direito são, no latim: "honeste vivere" (viver honestamente), "alterum non laedere" (não prejudicar a ninguém) e "suum cuique tribuere" (dar a cada um o quê lhe é devido). 

Sequência da prisão de Rorschach.


São máximas que validam o Direito, protegem e distribuem a Justiça na Terra. E assassinato e violência também não me parece de acordo com uma pessoa que viva honestamente, não prejudicando a ninguém e dando a cada um o quê lhe é devido. Pois no fundo, a Lei de Talião ("olho por olho, dente por dente") não deve ser aplicada por nós, meros mortais. Ou seja, se alguém prejudicou alguém, estuprou ou assassinou, isso não nos dá o Direito de praticar o mesmo com esta pessoa, pois soa injusto à boa moral.

Indo ainda mais além, dentro do Espiritismo (doutrina a qual eu estudo) temos uma obra chamada "O Céu e o Inferno", ditada pelos Espíritos e publicada por Allan Kardec. Segundo esta obra, basicamente, a Justiça Divina processa-se de acordo com um princípio evangélico básico, uma das máximas do Filho do Homem, Jesus Cristo: "A cada um com suas obras".

Rorschach interroga chapados no bar,
torturando-os delicadamente.


Aí você deve estar pensando: "Tayan, você está metendo o pau no Rorschach, mas acima disse que ele era o personagem que você mais admirava." E de fato, o admiro. Pois durante a trama, ele é muito específico sobre sua "não-crença" em Deus. Dizendo algo como: "Este mundo não é moldado por forças metafísicas. Não é Deus que mata crianças. Não é o destino que as massacra ou que alimenta seus cachorros com elas. Somos nós. Apenas nós.", referindo-se à menina Blair, que foi assassinada.

Walter explica ao psiquiatra no quê
ele REALMENTE acredita.


Como eu posso julgar ou criticar alguém que age assim, se esse alguém não acredita em Deus? Afinal, deve ser desolador, para não dizer DESESPERADOR viver num mundo como o nosso, sem crer na Justiça Divina. São barbaridades e atrocidades sem número, que ocorrem no nosso dia-a-dia.

Rorschach queimando um policial
numa emboscada.
OH SHIT!


As declarações de Rorschach são, por exemplo, completamente opostas com as declarações do comandante do BOPE, que li ainda essa semana, em meio à todo esse caos que ocorre no Rio de Janeiro atualmente. Nem sei se essa declaração procede na verdade, mas merece no mínimo uma análise. A declaração é: "Perdoar os bandidos cabe à Deus. Ao BOPE cabe promover esse encontro."

Rorschach queima o policial denovo.
Agora no filme.


Calma lá, se você acredita em Deus, não pode falar uma merda dessa. Pois se você acredita realmente em Deus, sabe que o encontro de qualquer alma com Ele, só é promovido por ele mesmo. Nem o BOPE, nem o Rorschach têm o direito de promover esse encontro legitimamente. 

Again. OH SHIT!


Mas como eu já disse, Rorschach não acreditava em Deus. Ele não promovia encontro de criminoso com Deus algum. Ele simplesmente, agindo dentro de seu ideal e conceito próprio de Justiça, expurgava esses criminosos covardes da sociedade. E dentro dele, é um ideal nobre. Não um ideal covarde. É um ideal inclusive altruísta, pois no fundo não era um ato de revanchismo ou vingança pessoal - era apenas a Justiça dele sendo executada. Justiça onde ele mesmo julgava, condenava e executava. Em proteção à sociedade. Pelo bem da sociedade. Pelo bem da "República". Um verdadeiro guardião, e até em seu último suspiro, antes de ser assassinado, não traiu seu código moral. Seu código de Justiça. Pois ninguém que ele matou, segundo seu julgamento, era inocente. Nem corria o risco de ser inocente. Eram todos criminosos confessos. E se não existia Deus, cabia à ele executar a Justiça no Planeta. 

Pronto para escalar o prédio de Edward Blake.


Por isso todos os fãs são apegados demais ao Rorschach, nunca conheci UM que não tivesse muito carinho por ele. Por isso ele soa carismático, ao mesmo tempo que soa ultraviolento (tudo bem, acho que o fato dele ser baixinho também ajuda ele a ser mais carismático). Pois ele não é apenas mentalmente desequilibrado, ele é verdadeiro e acredita de coração naquilo que faz. E sem esperar reconhecimento ou recompensas por isso. Faz por que é seu dever fazer. Nunca ferindo inocentes. Apenas ferindo quem deve ser ferido. Protegendo a sociedade. 

Rorschach´s watching YOU, bitch.


Confesso que eu mesmo, caso não acreditasse ou não tivesse fé em Deus, já teria me tornado um vigilante mascarado há MUITO tempo. Mas ainda não decidi qual ia ser meu alter-ego, nem como seria minha fantasia. O dia que eu resolver essa importante questão na minha vida, eu compartilharei com vocês, queridos leitores.

Rorschach invadindo a base militar.


Finalizando. No final de "Watchmen", por ironia do destino (ou não), seu diário, contando toda a verdade, acabou caindo nas mãos de um redator de um jornal. Mesmo depois de morto, continuou sendo justo consigo mesmo, e com a sociedade. Para bem ou para mal, pouco importa. O verdadeiro justo não trai a si mesmo.

Perdeu, Moloch.


Sua última anotação em seu diário pessoal é essa:

"1 de novembro de 1985. Último registro? Saímos do escritório de Veidt quase meia-noite. Dreiberg, convencido de que Veidt está por trás de tudo, fala sério em visitar a Antártica. A nave dele aparentemente tem condições, mas e nós? Veidt. Não imagino oponente mais perigoso. Se a jornada for possível, rastreá-lo ao seu covil é a única opção. Mas me sinto intranqüilo. Território desconhecido... Ele poderia nos matar na neve. Ninguém jamais saberia... Primeira noite de novembro. Estou com frio. Escritórios abaixo, lajes marcando diariamente milhares de túmulos. Dentro, nos mostradores dos relógios, tão visados quanto celebridades, os ponteiros iniciam as voltas finais. O fim vem a galope, favorecendo a espora, poupando as rédeas. Acho que vamos tombar logo. Veidt é mais rápido do que Dreiberg. Talvez mais do que eu. Voltar da missão parece improvável. Última anotação. Vou mandar o diário aos únicos em quem confio. Digo a Dreiberg que preciso checar minha caixa postal. Ele acredita. Quer eu esteja vivo ou morto, se você estiver lendo isso agora vai saber da verdade: seja qual for a natureza desta conspiração, Adrian Veidt é o responsável. Esforcei-me para ser compreensível. Acredito que tracei um quadro aterrador. Apreciso seu apoio recente e espero que o mundo sobreviva até isto chegar às suas mãos, mas tanques estão em Berlim oriental e o fim está próximo. Quanto a mim, de nada me arrependo. Vivi a vida sem concessões... e agora avanço rumo às sombras sem me queixar. RORSCHACH, 1 de novembro de 1985."

O último quadrinho de "Watchmen".
O Diário de Rorschach.


Rorschach, eu pessoalmente te absolvo. À cada um com suas obras. Boa madrugada à todos. 

P.S.: Com este post, com muito pesar, encerro o especial "Watchmen". Já estou com saudades.

Allan Moore e Dave Gibbons ainda jovens,
autor e desenhista de "Watchmen."

Um comentário:

  1. Eu também já estou com saudades.
    Encerrou com classe, hein?
    Eu pessoalmente gosto muito do Rorschach, mas concordo com você quando diz que a justiça cabe a Deus. Pena de morte, justiça com as próprias mãos... nada disso funciona, porque o mundo não vai deixar de ter gente ruim e injusta só porque você colocou um capuz muito louco e resolveu brincar de minerva pelas ruas da cidade.

    Parabéns pela série, querido! Que orgulho!
    Agora comece a pensar num novo tópico para uma nova série, surprise us! =)

    E, ah, sabe como eu sei que você é MEGANERD???

    Beijos!

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